segunda-feira, abril 09, 2007

Longe demais

Encostei o carro num recanto solitário da estrada estreita de terra batida e deixei o tempo afastar-se devagar até perder o sentido, imergindo naquele profundo silêncio verde e castanho que estava mesmo a pedir um comprido cigarro, como o Carnaval do Rio exige uns bons tragos de cachaça. Naquela manhã sentia-me particularmente desmotivado e passou-me pela cabeça voltar para casa, ouvir Bach e adormecer de novo. Pensei melhor. Achei que isso acabar por me fazer senti uma espécie de derrota, seria desistir de viver por inteiro aquele belo dia de Primavera com os sentidos bem despertos, significaria virar as costas à serra, à “minha” serra, renunciar ao desafio de enfrentá-la uma vez mais de alma aberta, faltar ao nosso habitual duelo fraterno e profundo. Decidi ficar. Há algum tempo que me deslocava regularmente para aquela zona, de cavalete, tela e tralha e tal, com o propósito de captar em pinceladas os segredos daquela magnífica quietude, procurando sempre descobrir ângulos e perspectivas diferentes, queria fazer de Sintra a minha Montanha de Sainte-Victoire e que ela, em troca, tivesse a generosidade de revelar em mim o génio de um Cézanne. Em suma, estava desesperadamente decidido a ser artista, só muito mais tarde tive consciência de quão ambicioso, gratificante e natural é, pura e simplesmente, deixarmo-nos “ser”. A verdade é que eu tinha acabado de passar por um período de auto-comiseração, de solidão involuntária e depressiva, e procurava a todo o custo preencher o enorme vazio provocado pelo desmoronar de uma relação, daquelas que se julgara indestrutível, imune ao próprio desgaste do tempo – “esse grande escultor” – pelo delirante e generalizado facto de ambos os protagonistas terem insistente e prolongadamente acreditado terem sido feitos um para o outro, contra todos os sinais visíveia, aliás. Como se a Natureza oferecesse a alguém, de mão beijada, a sua alma gémea e complementar, poupando-nos assim à enorme trabalheira de termos de nos ir “fazendo” uns aos outros, instante a instante, decifrando e moldando em função de tudo o que vai acontecendo dentro e fora de nós. É realmente mais fácil e reconfortante pensarmos que paixões, alianças e cumplicidades nascidas de situações ímpares, instantes únicos arquitectados sabe-se lá porque raio de conjunturas que nos transcendem, estão ali para durar para sempre. É fácil mas é incómodo, exasperante, quando somos mesmo obrigados a reconhecer que a vontade não chega para que as coisas sejam como desejaríamos, quando não conseguimos mais mentir desalmadamente aos espelhos, quando temos que nos lembrar de novo que o amor eterno existe, mas noutra dimensão, onde nada pertence a ninguém.

À medida que a minha mente ia tecendo considerações desta natureza, as cores espalhavam-se calmamente pela tela, experimentando novas tonalidades, novas formas, novas convivências, deixando o sol determinar firmemente o seu destino, e foi já perto do lusco-fusco, quando eu estava a dar a minha obra por concluída, que vi surgirem na linha curvilínea do horizonte, desenhada por uma pequena colina com várias árvores dispersas, 5 figuras humanas, que me pareceu serem a de uma rapariga e quatro rapazes. A distância não me permitia ouvi-los nem ver as suas expressões, apenas as suas silhuetas em movimento, os seus gestos, as suas piruetas, podia jurar que se riam com prazer genuíno, despreocupada e efusivamente. De alguma forma e apesar da velocidade dos seus movimentos, consegui integrá-los na minha pintura e transmitir através dessa representação, com a ajuda dum súbito bafo divino de inspiração, a sua alegria transbordante. Lembro-me de ter voado nos meus sonhos nessa noite. O quadro desapareceu, anos depois, duma casa onde vivi algum tempo, ali para o Príncipe Real, alguém o levou sem pedir licença, numa daquelas noites brancas em que as pessoas vão chegando e dizem “olá”, ficam por tempo indefinido e, quando lhes apetece, vão-se embora sem ninguém dar por isso, sem dizerem “té amanhã” – talvez por amanhã ser sempre longe demais – naquelas noites que se recusam a ter um fim preciso. Ocasionalmente, em certos concertos, encontros, momentos especiais, tornou-se natural essa pintura invadir-me a memória com todos os seus detallhes, do mais pequeno arbusto ao enquadramento da serra e do céu, com aqueles vultos mágicos a disparar vida em todas as direcções. Fiquei paralisado de espanto, quando há poucos meses, ao olhar distraidamente para a montra dum alfarrabista parisiense, dei de caras com a minha pintura, era exactamente a mesma pintura, só que em tamanho mais reduzido –servia de ilustração para a capa dum livro já muito usado, provavelmente antigo, onde o título da obra e o nome do autor constavam, em negro baço, num alfabeto que me pareceu ser cirílico. Escusado será dizer que não me dei ao trabalho de entrar para obter informações sobre a obra. Senti apenas uma calma profunda a instalar-se em mim e o vidro da montra reflectiu o meu sorriso, longo e bonito, quase irreconhecível.

-Jorge Palma-




"Amanhã É Sempre Longe de Mais

Pela janela mal fechada
Entra já a luz do dia
Morre a sombra desejada
Numa esperança fugidia
Foi uma noite sem sono
Entre saliva e suor
Com um travo de abandono
E gosto a outro sabor


Dizes-me até amanhã
Que tem de ser que te vais
Porque amanhã sabes bem
É sempre longe demais
Acendo mais um cigarro
Invento mil ideais
Só que amanhã sei-o bem
É sempre longe demais


Pela janela mal fechada
Chega a hora do cansaço
Vai-se o tempo desfiando
Em anéis de fumo baço
"

Vitinha

(Rádio Macau)

3 comentários:

bissaide disse...

Boa recordação! Abraço para o Luís e beijos para a Nanda, e, já agora, cumprimentos ao resto do pessoal! João Carlos

Maurette disse...

Gosto do Jorge. Decididamente, gosto desse sujeito. E está aí mais uma bela razão.

Estefânia Reis disse...

"...temos que nos lembrar de novo que o amor eterno existe, mas noutra dimensão, onde nada pertence a ninguém." Jorge Palma sempre a surpreender... Decididamente... o MESTRE é que sabe...