
À medida que a minha mente ia tecendo considerações desta natureza, as cores espalhavam-se calmamente pela tela, experimentando novas tonalidades, novas formas, novas convivências, deixando o sol determinar firmemente o seu destino, e foi já perto do lusco-fusco, quando eu estava a dar a minha obra por concluída, que vi surgirem na linha curvilínea do horizonte, desenhada por uma pequena colina com várias árvores dispersas, 5 figuras humanas, que me pareceu serem a de uma rapariga e quatro rapazes. A distância não me permitia ouvi-los nem ver as suas expressões, apenas as suas silhuetas em movimento, os seus gestos, as suas piruetas, podia jurar que se riam com prazer genuíno, despreocupada e efusivamente. De alguma forma e apesar da velocidade dos seus movimentos, consegui integrá-los na minha pintura e transmitir através dessa representação, com a ajuda dum súbito bafo divino de inspiração, a sua alegria transbordante. Lembro-me de ter voado nos meus sonhos nessa noite. O quadro desapareceu, anos depois, duma casa onde vivi algum tempo, ali para o Príncipe Real, alguém o levou sem pedir licença, numa daquelas noites brancas em que as pessoas vão chegando e dizem “olá”, ficam por tempo indefinido e, quando lhes apetece, vão-se embora sem ninguém dar por isso, sem dizerem “té amanhã” – talvez por amanhã ser sempre longe demais – naquelas noites que se recusam a ter um fim preciso. Ocasionalmente, em certos concertos, encontros, momentos especiais, tornou-se natural essa pintura invadir-me a memória com todos os seus detallhes, do mais pequeno arbusto ao enquadramento da serra e do céu, com aqueles vultos mágicos a disparar vida em todas as direcções. Fiquei paralisado de espanto, quando há poucos meses, ao olhar distraidamente para a montra dum alfarrabista parisiense, dei de caras com a minha pintura, era exactamente a mesma pintura, só que em tamanho mais reduzido –servia de ilustração para a capa dum livro já muito usado, provavelmente antigo, onde o título da obra e o nome do autor constavam, em negro baço, num alfabeto que me pareceu ser cirílico. Escusado será dizer que não me dei ao trabalho de entrar para obter informações sobre a obra. Senti apenas uma calma profunda a instalar-se em mim e o vidro da montra reflectiu o meu sorriso, longo e bonito, quase irreconhecível.
-Jorge Palma-
in "Livro Pirata - Rádio Macau" (2005)
"Amanhã É Sempre Longe de Mais
Pela janela mal fechada
Entra já a luz do dia
Morre a sombra desejada
Numa esperança fugidia
Foi uma noite sem sono
Entre saliva e suor
Com um travo de abandono
E gosto a outro sabor
Dizes-me até amanhã
Que tem de ser que te vais
Porque amanhã sabes bem
É sempre longe demais
Acendo mais um cigarro
Invento mil ideais
Só que amanhã sei-o bem
É sempre longe demais
Pela janela mal fechada
Chega a hora do cansaço
Vai-se o tempo desfiando
Em anéis de fumo baço "
Vitinha
(Rádio Macau)
3 comentários:
Boa recordação! Abraço para o Luís e beijos para a Nanda, e, já agora, cumprimentos ao resto do pessoal! João Carlos
Gosto do Jorge. Decididamente, gosto desse sujeito. E está aí mais uma bela razão.
"...temos que nos lembrar de novo que o amor eterno existe, mas noutra dimensão, onde nada pertence a ninguém." Jorge Palma sempre a surpreender... Decididamente... o MESTRE é que sabe...
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