“De quase nenhum artista, de agora ou de sempre, malabarista, arquitecto, romancista ou músico saberia dizer o mesmo com esta ternura: gosto tanto das suas enormes qualidades como dos seus também visíveis defeitos, tanto das vitórias como das derrotas, tanto da surpreendente maneira como, no canto, supera uma frase como da inesperada nota falsa que se pode intrometer sem que no entanto nada manche. É que de tudo isto, das fraquezas e das valentias, do sonho e da desgarrada voz com que sobe pela noite fora e por dentro das almas, foi o Jorge Palma fazendo arte declaradamente viva. Posso ter pena, eu que tão diferente sou, de ele não ter feito mais, de perder noitadas, de chegar atrasado, de cantar tão poucas cantigas. Mas é essa mesma a sua arte, esta ferida por sarar, este mal-estar para que olha com infindo humor, esta troça que faz de si, este perder-se pela vida dos dias, este abandono, este convívio, esta delicadíssima amizade, a tanta ternura com que sobe ao palco, amor sem manhas, presença sem gordura, lá metido com a sua desordem, desordem no entanto em tudo transparente. É este cantar “sem nada na manga” que mesmo sem o conhecer, sentados numa qualquer plateia, com ou sem copo na mão, nos faz ser amigos, tão amigos, irmãos mais velhos sempre, mas sempre do mesmo lado deste homem imprevisível e deste artista em carne tão viva. Mas a carne viva do Jorge não é só da imensa angústia, do medo, da solidão: não, ele canta a vida toda e está desprevenido, quer perante a dor, quer perante a alegria, desarmado e combativo, por muita indolência ou atrapalhação que por ali tenha tropeçado. E da mesma cantiga sabe cantar dor ou alegria, nas mesmas notas verte a vida dos dias, é sempre uma nova cantiga a mesma que ele vai cantar, precisa de tão pouco, precisa dele apenas, tão nu, desprevenido, apanhado em sobressalto. É dos raros artistas que se diz “amo-o” e é claro que, nas nervuras da alma, no sopro do vento, naquele CD desarrumado que de vez em quando ponho, eu amo o Jorge Palma, tanto. E ele me é tão companheiro, transparente, camarada.”
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“De quase nenhum artista, de agora ou de sempre, malabarista, arquitecto, romancista ou músico saberia dizer o mesmo com esta ternura: gosto tanto das suas enormes qualidades como dos seus também visíveis defeitos, tanto das vitórias como das derrotas, tanto da surpreendente maneira como, no canto, supera uma frase como da inesperada nota falsa que se pode intrometer sem que no entanto nada manche.
É que de tudo isto, das fraquezas e das valentias, do sonho e da desgarrada voz com que sobe pela noite fora e por dentro das almas, foi o Jorge Palma fazendo arte declaradamente viva. Posso ter pena, eu que tão diferente sou, de ele não ter feito mais, de perder noitadas, de chegar atrasado, de cantar tão poucas cantigas. Mas é essa mesma a sua arte, esta ferida por sarar, este mal-estar para que olha com infindo humor, esta troça que faz de si, este perder-se pela vida dos dias, este abandono, este convívio, esta delicadíssima amizade, a tanta ternura com que sobe ao palco, amor sem manhas, presença sem gordura, lá metido com a sua desordem, desordem no entanto em tudo transparente.
É este cantar “sem nada na manga” que mesmo sem o conhecer, sentados numa qualquer plateia, com ou sem copo na mão, nos faz ser amigos, tão amigos, irmãos mais velhos sempre, mas sempre do mesmo lado deste homem imprevisível e deste artista em carne tão viva. Mas a carne viva do Jorge não é só da imensa angústia, do medo, da solidão: não, ele canta a vida toda e está desprevenido, quer perante a dor, quer perante a alegria, desarmado e combativo, por muita indolência ou atrapalhação que por ali tenha tropeçado. E da mesma cantiga sabe cantar dor ou alegria, nas mesmas notas verte a vida dos dias, é sempre uma nova cantiga a mesma que ele vai cantar, precisa de tão pouco, precisa dele apenas, tão nu, desprevenido, apanhado em sobressalto.
É dos raros artistas que se diz “amo-o” e é claro que, nas nervuras da alma, no sopro do vento, naquele CD desarrumado que de vez em quando ponho, eu amo o Jorge Palma, tanto. E ele me é tão companheiro, transparente, camarada.”
Jorge Silva Melo
In “Na Terra dos Sonhos”
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