A mãe sonhava que fosse pianista, mas Jorge Palma não resistiu aos apelos do rock. Tocou nas ruas de Paris e viveu sem limites. Muitas vezes acordou sem se recordar do que fez, mas diz que mudou. Pediu ajuda médica e libertou-se. Acabou de lançar Com Todo o Respeito, mas já só pensa em ser avô.
Em tempos disse que a sua vida tem tantas histórias que nunca vai conseguir contá-las todas...
Você tem tempo?
Todo o tempo do mundo. Começamos pelo novo trabalho, Com Todo o Respeito?
É um disco perfeitamente despretensioso. Não tenho nenhuma ideia inovadora em relação à música, continua a ser o meu estilo, a minha maneira de escrever. Deixo as ideias correrem e gosto de me surpreender.
O que lhe merece todo o respeito?
As pessoas que não desistem das suas ideias, das suas intenções. Tenho respeito pelas pessoas que se mantêm fiéis aos seus valores. Há uns dias vi um documentário sobre o Virgílio Ferreira, que foi meu professor no Camões e de quem li algumas coisas. Ele dizia que escrevia a pensar no eu, mas não era um eu individualista, alargava à comunidade. Penso que sou assim. Penso em mim, nas minhas emoções. Não escrevo para o público. Escrevo coisas que me apetece escrever.
Mas aquilo que escreve tem marcado a vida de muitas pessoas. Tem consciência que há grandes histórias de amor cuja banda sonora é da sua autoria?
Sim. Abordam-me para dizer que foi ao som de uma música minha que deram o primeiro beijo. Isso dá-me um certo orgulho. Tenho tido impacto positivo nas pessoas. Sinto que o meu público é muito extenso, é um leque que atravessa gerações, de miúdos de sete anos até velhotes. Claro que os putos ouvem porque os pais têm em casa e começam a ouvir.
Há outro fenómeno que cativou esse público mais jovem: o sucesso televisivo em que se tornou ‘Agarra-te a Mim’, single do anterior álbum, Voo Nocturno.
Aquela faixa que era para não entrar…
Arrepende-se que tenha entrado?
Bem pelo contrário! Em boa hora entrou. Não a inclui porque a achava um bocado azeiteira. Mas pessoas como o Rui Veloso, os meus filhos e a minha mulher, disseram: ‘Estás maluco? Tem de entrar!’.
E assim o cantautor rebelde virou um fenómeno de massas…
Com uma balada de amor que está engraçada, mas musicalmente é absolutamente normal. ‘Encosta-te a Mim’ tornou-me mais conhecido. Vejo mais pessoas na rua a sorrirem para mim. Alargou-me o público que ficou a saber que eu existia e que comprou o disco e que estará agora predisposto a comprar o novo. Mas um novo CD é sempre voltar à estaca zero.
É a ansiedade de ver se ainda gostam de si?
Isso estará presente nos meus pensamentos… Mas a ideia é mais: ‘Vamos lá ver o que consigo fazer, vamos ver se ainda tenho jeito’. Nos quatro anos entre o Voo Nocturno e Com Todo o Respeito, perdi o hábito de ir para a esplanada sozinho e escrever, de pegar num guardanapo ou no que estiver à mão. Não deixei totalmente de escrever, fui escrevendo coisas para o filme do António-Pedro Vasconcelos e para a peça de teatro do Hélder Costa, mas isso são encomendas.
Vive bem da música?
Tenho feito a minha carreira a pulso, ao longo de 40 anos de canções. Em alturas de menos dinheiro fiz traduções técnicas, toquei em bares… Nunca faltou nada essencial. Nunca me cortaram a luz, houve sempre comida. Nunca me senti à beira do desespero ou da angústia, ou desmoralizado. Estou mais apreensivo agora.
Os seus pais divorciaram-se muito cedo. Tem recordação de os ver juntos?
Não. O meu pai vinha-me buscar e era sempre uma grande festa. Estou a ser assim para o meu filho mais novo, que tem 16 anos.
Isso é um mea culpa?
É um acto de contrição. É imperdoável. Sou cumpridor do ponto de vista económico, estou atento e em contacto permanente. Mas vivemos a um quilómetro um do outro e sou bem-vindo em casa da minha ex-mulher, no entanto... Estou a fazer com o Francisco o que o meu pai fez comigo. Com o mais velho, o Vicente, estou mais porque faz parte da minha banda. O Francisco tem 16 anos, vive com a mãe, está em plena adolescência e tem a mania que sabe tudo. Tem muito mais sentido de humor do que o mais velho. Tem um sentido de humor arrasador. Ele chega a algum sítio onde estão músicos e diz ‘Eu sou aquele filho que ninguém conhece’.
O que não é artista…
Já teve a sua formação musical em piano e agora quer estudar guitarra. Mas quer aprender com um professor, não com o pai ou com o irmão. Já aprendeu muito com o irmão. O Vicente tem mais 12 anos e é um segundo pai, severo e austero, mas não vivem um sem o outro.
Quando é que o Vicente começa a trabalhar consigo?
Convidei-o há uns dez anos, logo para uma festa do Avante! ou uma Queima de Coimbra. Foi logo para milhares de pessoas. Convidei um bom músico que sabia tocar as minhas músicas e que era meu filho. Foi uma forma de também o ajudar economicamente.
Acha que eles têm orgulho em si?
Acho que têm, mas não tiram partido, não têm feitio para isso. A prata da casa foi verem-me sempre a tocar ao piano, a cantar, a inventar letras… E não ligavam nenhuma. Antes queriam era ouvir as bandas do gosto deles. O Francisco está agora a descobrir o pai que escreve canções e está a gostar, o que me deixa orgulhoso. O Vicente já descobriu há mais tempo.
Teve formação em música clássica, mas quando o rock entra na sua vida muda-a radicalmente. Quando aconteceu?
Na rádio ouvia Maria de Lurdes Resende, António Calvário, Amália e música clássica. Depois, no final dos anos 50, a minha mãe comprou um gira-discos e isso levou-me a conhecer o Charles Aznavour, o Gilbert Bécaud, o Dylan, o Simon & Garfunkel, o Elvis. Mas o grande choque é quando conheço os Beatles e os Rolling Stones. Tinha 14 anos e fiquei completamente rendido. Que se lixe a música clássica, que era muito austera! O mundo do sex, drugs & rock’n’roll é que era!
Desiste do curso para regressar à música, como orquestrador, mas assim perde o direito ao adiamento da tropa.
Ainda assim, consegui uma licença militar 15 dias antes da minha suposta entrada na tropa. Saltei de alívio, vendi as coisas que tinha, o que deu para fazer uma vida folgada durante uns tempos. E parti para Londres e depois para a Dinamarca.
Nada. Apesar de ter um grupo de amigos e de irmos todas as noites para o Adlib e o Stones. Era uma tertúlia permanente, com o José Carlos Ary dos Santos, o Luís de Sttau Monteiro, a Amália, a Natália Correia. Nunca fiz músicas panfletárias, ao contrário do José Mário Branco ou do Zeca Afonso, que também estavam nestas tertúlias. Mas era muito bom ouvi-los. Sempre gostei de ser um livre-pensador.
Como foi a vida na Dinamarca?
Estava protegido por um amigo que foi o meu anfitrião durante os primeiros seis ou nove meses, altura em que vendeu a vivenda onde estávamos. Quando ele começou a pensar vender a casa e eu a ficar sem dinheiro, disse-me que eu devia pedir asilo político e ajudou-me a tratar dos papéis. Lembro-me de grandes discussões com os colegas de casa, estudantes trabalhadores. Eu dizia que os gajos eram uns chatos do caraças e que as taxas de suicídio eram maiores lá. Entretanto ainda casei com a namorada com que fui para lá porque tinha conseguido o estatuto de exilado e se casássemos ela podia continuar lá. Fiquei menos tempo porque se dá o 25 de Abril e fiquei cheio de curiosidade.
É graças a esse casamento que, anos mais tarde, vive em bigamia?
Sim. Essa minha mulher já morreu, mas houve uma altura em que ela começou a viver com outra pessoa e portanto queria resolver as coisas, mas um de nós tinha de ir à Dinamarca. Ainda combinámos partilhar as despesas, mas não chegámos a ir. Eu estava casado com outra pessoa que também se estava a marimbar. Nunca tive problemas, porque também nunca validámos o casamento em Portugal.
Tem algum fascínio pelos casamentos no estrangeiro? Casou com a sua actual mulher, Rita Tomé, em Las Vegas...
Foi uma brincadeira, já vivíamos como casados há uns dez anos. Estávamos num grupo da promotora e produtora UAU que incluía o Rui Veloso, o Manuel Moura dos Santos, o Fernando Alvim, o Rui Braga… Não dissemos a ninguém. As alianças foram compradas na véspera e custaram uns cinco dólares. Casámos na capela Viva Las Vegas, e a música de entrada da noiva fui eu a cantar o ‘Encosta-te a Mim’, e os padrinhos foram o Elvis e a dona da capela, a Dolores. Tínhamos uma limusina branca e, no fim, fomos para o hotel beber. Estávamos no lobby e ia aparecendo pessoal como o Rui e o Manuel, zangadíssimos. Fartei-me de oferecer copos.
Como viveu o 25 de Abril à distância?
Telefonei a imensos amigos, como o Ary. Nessa altura estava a viver numa casa paga pelo governo dinamarquês e deixei lá uma conta de telefone monstruosa! Cheguei a Portugal num carro alugado e o país estava em festa. A GNR que, um ano antes, eram pessoas para me baterem com um cassetete, ofereceram-me gasolina!
Mas porque quis deixar Portugal numa altura de euforia e liberdade?
Estávamos em 1976, já tínhamos o Eanes e as coisas estavam muito indefinidas… Tinha 26 anos, estava na idade de viajar. É um período em que experimento drogas duras – e daí a minha hepatite C.
Percebeu que tinha tocado em substâncias que podiam acabar com a sua vida?
Sim. Estamos a falar de heroína, cocaína, morfina, mezcalina … As ‘inas’ todas. Experimentei tudo. Ou quase tudo. Entretanto um amigo morre de overdose e no dia seguinte estava em Espanha.
Quando os amigos começam a morrer a festa deixa de ter graça?
Pois… Esse foi o primeiro, o Nuno. Estava a ensinar-me a tocar flauta transversal, eu que nem sequer consigo assobiar. Gostava muito dele.
Os tempos em que tocou nas ruas de Paris foram os tempos em que foi genuinamente feliz?
Livre. Não havia compromissos com ninguém e isso é muito bom. Estava sempre a cruzar-me com músicos de todo o mundo, da Malásia, dos EUA, da Irlanda... Arranjava-se sempre dinheiro. Foi uma altura de ouro, propícia a fazer-se dinheiro a tocar e a cantar. Estava num hotel no centro da acção. Todos os dias tomava o pequeno-almoço no café Mazet, que é o ponto de encontro dos músicos de rua. ‘Bonjour Jeanette!’. Pedia uma omeleta de cogumelos, um café com leite ou uma cerveja e ia tocar. No fim do dia passava lá para pagar.
Quando voltou a Portugal?
Volto a Portugal para mostrar o país à minha namorada americana. Quando cheguei até tive vergonha. Estava há dois anos e tal em Paris e viajava por toda a Europa. Chego num domingo à tarde a Santa Apolónia e aquilo era feioso. Levei-a logo para o Algarve, era o princípio do Verão e ficámos bem. Depois regressámos a Lisboa e já não correu tão bem. Ela era vegetariana, não fumava, não bebia, não falava português e chateou-se. No Natal foi visitar a família, continuámos a namorar por telefone e por carta, mas apaixonei-me por outra pessoa.
Ao nível da relação com as pessoas? Disse em tempos que se arrepende da forma como tratou algumas pessoas da sua vida…
Sim. Gostava de, em alguns casos, ter tido mais atenção, mais cuidado. A partir dos 30 anos, já tinha um filho e era casado, dei umas facadas e arrependo-me. Magoei alguém que não merecia, sem necessidade. Como as coisas estavam a esfriar podia ter dito ‘lamento mas vamos seguir caminhos diferentes’. Escusava de ter deixado chegar a um limite.
Pediu desculpa?
Mil desculpas. E sentidas.
E foi desculpado?
Desculpado, mas não esquecido. Os acontecimentos estão perdoados, mas não esquecidos. Nem da minha parte. É impossível esquecer, com tanta coisa que se viveu ao longo de 20 anos, e com dois filhos no meio. Só se eu fosse amnésico.
Esses acontecimentos afectaram a maneira como os seus filhos olham para si?
Os meus filhos são muito meus amigos, não me culpam de nada. A não ser em fases em que tenho bebido demais e eles se preocupam. Não é o caso actual, estou a ter muito mais cuidado, não tenho exageros como nos velhos tempos. Nem sinto necessidade de apanhar aquelas bebedeiras monumentais, siderais, obscenas, como diz o Fausto… Tenho fama, mas tenho tido proveito. Mas a idade ajuda-nos a ter mais cuidado. Felizmente tenho tido uma saúde de ferro. A hepatite C é a única cena que tenho, mas faço análises regulares e os bichinhos estão controlados.
Mas os seus filhos costumavam-lhe dizer alguma coisa?
Às vezes exageradamente. Estou sem pegar num copo durante uma semana, num dia de concerto peço um copo de vinho, e os meus filhos, a minha banda, toda a equipa, fica tudo naquela: ‘O que é isso? É chá?’. Também tenho o direito de beber uma cervejinha.
O que sente, como pai, quando os seus filhos lhe dizem ‘Não bebas’?
Respeito a opinião deles e sossego-os. Mas não se metam na minha vida a esse ponto. Não me estão a ver bêbedo, pois não?
Mas já viram.
Dizem-me que já têm visto e que começo com um copo e a coisa começa a aumentar. Mas tranquilizo-os. Não é nada disso que está a acontecer. Não gosto nada de ter permanentemente um olho em cima de mim, isso irrita-me. Vejo toda a gente a beber livremente. Deixem-me em paz que sei o que estou a fazer. Por exemplo, estou a beber esta cerveja, é para aí a terceira de hoje e já não me está a apetecer.
Consegue assumir que tem um problema?
Uma pessoa como eu é alcoólica para a vida. Isto é uma doença, tenho é um grande controlo sobre mim. Mudei. Assumi que tinha um problema e recorri a ajuda psiquiátrica. Vou visitar o meu psiquiatra de vez em quando. São conversas, informais, em que ele vai tirando ‘nabos da púcara’. E receita-me umas coisas. Tomo medicamentos que tiram o desejo de beber e uns Triticuns e mais não sei o quê, para dormir bem. Às vezes tenho dificuldades em dormir, tenho sonhos que nem dá para imaginar. Sou o herói, nunca fui morto num dos meus sonhos. Aprendi com uma tribo de índios norte-americana a controlar os sonhos.
O vício prejudicou os seus concertos?
Claro que sim, houve concertos em que estava impróprio, em que me esqueci demasiado das letras. Sou culpado disso. Quando ia à televisão sentia o nervosismo das pessoas e quase que bebia por teimosia. Mas esse tipo de teimosia estúpida não tem acontecido. Convém que esteja lúcido e limpo para me concentrar. São muitas músicas, muitas letras… Por mais sóbrio que esteja, não houve nenhum concerto da minha vida em que não tenha tido uma branca.
Seria um músico diferente sem o álcool?
Provavelmente sim, todo o meu percurso. Mas não me envergonho das coisas que tenho feito ao longo da vida. Há coisas que gostaria de ter feito melhor, mas não pude. Estou vivo, sinto-me bem.
Em algum momento sentiu que a vida lhe estava a fugir ao controlo?
Sim. Em momentos em que andava a beber de mais. Com 20 anos as ressacas são uma coisa, dorme-se, bebe-se um café e está a andar. Com 60 anos já não é assim. Na minha idade as ressacas levam-nos para um estado depressivo que não tem interesse nenhum. Não tem piada não me lembrar das coisas que fiz. Fiz loucuras inconscientes como caminhadas num carreiro estreitíssimo à beira de um precipício em noite escura. Acordar com a cabeça fresquinha e lembrar-me do que fiz é estimulante. Não passei a vida bêbedo mas houve períodos em que exagerei. Um copo até estimula, abre janelas e normalmente aproveito para escrever, mas não se pode continuar nesse sistema porque tem de se ir aumentando a dose e nunca mais paramos.
A vida ainda é só sex, drugs & rock’n’roll?
Foi isso que me guiou durante anos. O sexo e o rock são extremamente importantes, as drogas nem por isso. Posso dar uma passa num charro ou uma linha de coca quando me passa à frente. Gosto do meu copo, mas neste momento não o considero uma droga. A minha droga é o tabaco, o meu pneumologista já me aconselhou a deixar de fumar… Há maluquices que já não me apetece fazer. Há uns anos subi ao Pico sem guia, com um frio de rachar e uma pequena lanterna. Mas ir todas as noites para os bares do Bairro Alto ou de Alfama já não me apetece, os anos da boémia não acabaram, mas a pachorra é diferente.Tenho assimilado, a pouco e pouco, a minha caducidade. Mas espero ainda conhecer os meus netos.
por Raquel Carrilho, in Sol
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