terça-feira, dezembro 04, 2007

Canção de Lisboa: análise

ONDE ESTÁS TU, MAMÃ? (CANÇÃO DE LISBOA)




A Canção de Lisboa parece-nos um bom exemplo de uma canção típica do solitário Jorge Palma. Esta canção surge primeiro com a poesia, que só posteriormente foi musicada, tendo por base uma sequência de acordes extraída do Frère Jacques em modo menor, tal como ele foi citado pelo Mahler numa das suas sinfonias,aquando do seu uso como marcha fúnebre.







Jorge aqui lembrou-se dessa ocorrência, e talvez levado pelo espírito depressivo e pelo ambiente pesado do poema, achou adequado adoptá-lo.

O Poema compõe-se de 4 estrofes de oito versos que são cantadas duas a duas em Dó menor, entrecortadas por um pequeno refrão sempre bisado no modo maior.

Os serões habituais
E as conversas sempre iguais
Os horóscopos, os signos e ascendentes
Mais a vida da outra sussurrada entre dentes
Os convites nos olhos embriagados
E os encontros de novo adiados
Nos ouvidos cansados ecoa
A canção de Lisboa

O poema começa por nos falar da monotonia que se esconde por detrás das relações que nem sempre correm bem e como isso conduz à solidão.

Não está só a solidão
Há tristeza e compaixão
Quando o sono acalma os corpos agitados
Pela noite atirados contra colchões errados
Há o silêncio de quem não ri nem chora
Há divórcio entre o dentro e o fora
Há quem diga que nunca foi boa
A canção de Lisboa

Na segunda estrofe há um reforço da ideia de como a solidão se afirma, mesmo quando as pessoas procuram outras que nem sempre são o amor desejado, apenas um consolo para o corpo físico.

A urgência de agarrar
Qualquer coisa para mostrar
Que afinal nós também temos mão na vida
Mesmo que seja à custa de a vivermos fingida
Um estatuto para impressionar o mundo
Não precisa de ser mais profundo
Que o marasmo que nos atordoa
Ó canção de Lisboa

Na terceira estrofe já nos é mostrada uma outra perspectiva, de como nós também temos necessidade afinal, é de nos afirmarmos custe o que custar, nem que seja através de ilusões ou dissimulações.

As vielas de néon
E as guitarras já sem som
Vão mantendo viva a tradição da fome
Que a memória deturpa e o orgulho consome
Entre o orgasmo na gruta ainda fria
E o abandono da carne vazia
Cada um no seu canto entoa
A canção de Lisboa

A quarta estrofe é o culminar disto tudo com o retorno a uma solidão profunda, após um acto sexual consumado, sem qualquer significado.

Estas quatro estrofes aparecem sempre sob a égide dum pessimismo associado ao urbanismo Lisbonense, o que talvez traduza a visão que Jorge nesta altura tinha de Lisboa: uma cidade povoada de solitários que, fingiam a sua felicidade e a dissimulavam em relações fortuitas e fracassadas e, em sinais exteriores de riqueza. Jorge tenta denunciar talvez, a hipocrisia que se apoderou da urbe portuguesa. Neste contexto, é no fundo uma canção com um certo cariz de intervenção social e um alerta para todos nós.

Tudo isto se passa musicalmente sob um condão depressivo da tal pseudo marcha fúnebre e acordes pesados. A única excepção é a pequena transição para o refrão, onde aparece uma pequena escala de blues debaixo das palavras "canção de Lisboa":

Esta transição é importante, porque o refrão aparece sempre em modo maior e com um cariz musicalmente alegre, de folia. A letra não traduz exactamente isso, mas talvez uma certa ironia ou um joguete infantil.

Mamã, mamã
Onde estás tu, mamã?
Nós sem ti não sabemos, mamã
Libertar-nos do mal

A utilização de "mamã" ao invés de mãe denota logo, uma intenção clara. Jorge procura aqui mostrar como todos nós somos vulneráveis, que, afinal, andamos perdidos e que, no fundo, ao procurarmos as relações sem sentido, buscamos sim um apoio materno que talvez já não exista ou não seja possível atingir.

Jorge canta a nossa incapacidade e o nosso desespero por não conseguir fazer nada direito e nos sentirmos frustrados, com uma aura de optimismo estonteante o que só pode remeter para uma ironia e um gozo do destino ou, quanto muito, para uma alegoria de como éramos felizes em criança quando tínhamos a “mãezinha” do nosso lado para nos livrar das alhadas e, não nos metíamos em confusões.

Estas duas atmosferas contrastantes compõem assim a “Canção de Lisboa”, que fecha tal qual começou: com a série de acordes fúnebres e, a cadenciar no acorde de dó menor, dando a entender, que a depressão urbana, por muito que tentemos fugir dela está para durar e é um ciclo sem saída.
Análise de Tiago Videira

7 comentários:

Anónimo disse...

Quem sabe, sabe (quem a fez e quem a analisou)... abraços!

Anónimo disse...

Fantastica esta interpretação...gostei muito!
cumps*

Anónimo disse...

Interpretação pertinente tal como a outra que já fizeste sobre a relação Terra dos Sonhos/ Palma / Stockhausen aqui neste mesmo blogue

cristina disse...

Tudo muito bem analisado, sim senhor! Mas tenho de confessar que não há modo de eu conseguir gostar daquele refrão!!! Eu percebo a história da ironia e tudo isso. Mas eu gosto tanto do resto da canção... E esta mudança para a alegria (irónica) dos acordes maiores acompanhada de uma letra... infantil - eu ia dizer "estúpida", mas não quero ferir susceptibilidades... - quase consegue destruir tudo aquilo de que eu havia gostado instantes antes...

Nota: Adorei a aceleração do refrão no concerto do Coliseu. Pode ser que um dia ele toque aquela parte tão depressa, tão depressa, que a gente nem dê por ela! :)

Anónimo disse...

epah, tenho que te dar os parabens... passaste para o papel aquilo que eu sinto e que nao consigo explicar... "quem sabe sabe" como disseram aí...=) Serei suspeita ao falar, pois esta é sem duvida uma das melhores dele (as outras todas tb, mas pronto...=) ), mas mesmo nao gostando dessa musica tu fizeste uma interpretaçao dela que qualquer um a irá ouvir e com atençao vai ama-la... quase de certeza...

parabéns*

Anónimo disse...

Só posso pensar que és muito nova...

cristina disse...

pois, se calhar é isso... daqui a uns anos falamos de novo, então!